Entre os anos de 2020 e 2022, em plena Europa desenvolvida, durante um dos períodos mais delicados da história recente por causa da pandemia, uma criança de apenas nove anos viveu uma realidade que mais parece roteiro de filme de sobrevivência. O menino morou sozinho em um apartamento na pequena cidade de Nersac, vilarejo próximo a Angoulême, no sudoeste da França, após ser abandonado pela própria mãe, que se mudou para viver com o namorado a cerca de cinco quilômetros de distância.
Durante quase dois anos, ele enfrentou invernos rigorosos sem calefação, tomou banhos frios por falta de água quente, passou períodos sem eletricidade, conviveu com a escassez de alimentos e, ainda assim, frequentou a escola todos os dias, manteve-se limpo, fez as tarefas e conservou boas notas, enganando professores, vizinhos e autoridades.
A mãe, uma mulher de 39 anos, foi condenada pela Justiça francesa a seis meses de prisão por abandono de menor em situação de risco. O pai da criança, que vive em outra cidade, não foi indiciado.
O abandono ocorreu em silêncio, a poucos quilômetros de distância
Enquanto o menino dormia sozinho em um apartamento frio e escuro, sua mãe estava instalada em outro endereço, vivendo com o companheiro. A distância de apenas cinco quilômetros entre os dois é um dos dados que mais chocaram as autoridades: o abandono não ocorreu por dificuldade financeira extrema, guerra, fome coletiva ou desastre natural, mas por decisão consciente de afastamento.
Segundo as investigações, a mulher não fornecia assistência regular, não permanecia com o filho e tentava sustentar a falsa narrativa de que ainda morava com ele. Durante o julgamento, ela chegou a alegar que vivia com a criança, mas foi desmentida pela polícia, que apresentou dados telefônicos e de deslocamento comprovando que ela raramente aparecia no apartamento.
Frio, fome e improviso: a rotina de sobrevivência de uma criança de nove anos
Sem supervisão de adultos, o menino precisou desenvolver uma rotina própria de sobrevivência. Nos meses mais frios do ano, quando as temperaturas caíam com severidade na região, ele não tinha calefação. Para aguentar o frio, se enrolava em sacos de dormir e cobertores, improvisando abrigo térmico dentro do próprio quarto.
Sem água quente, tomava banhos frios, inclusive no inverno. Em alguns períodos, também ficou sem eletricidade, vivendo no escuro durante a noite. Para se alimentar, recorria a estratégias desesperadas e silenciosas: roubava tomates de uma venda local e vasculhava pertences de vizinhos em busca de comida.
Tudo isso era feito sem chamar atenção, sem pedir ajuda, sem alarde.
A escola foi o disfarce involuntário de uma tragédia invisível
Um dos aspectos mais angustiantes do caso é que o menino frequentava a escola todos os dias. Ele chegava limpo, realizava as tarefas de casa e apresentava desempenho considerado normal ou bom para sua idade. Nada, à primeira vista, indicava que aquela criança voltava para um lar completamente vazio.
Foi justamente esse comportamento disciplinado que impediu que a situação fosse descoberta por tanto tempo. Professores, colegas e funcionários da escola não imaginavam que, ao final das aulas, ele caminhava sozinho para um apartamento sem adultos, sem supervisão e sem qualquer segurança.
A própria comunidade declarou à imprensa francesa que ninguém desconfiava da gravidade da situação, porque a criança “aparentava estar bem”.
Vizinhos desconfiaram, mas foram silenciados pela própria mãe
Alguns moradores da vizinhança chegaram a manifestar preocupação à mãe da criança. A resposta foi fria, direta e agressiva: segundo o jornal The Times, a mulher afirmou que estava cuidando do filho e que os vizinhos deveriam “cuidar das próprias vidas”.
Diante da negativa e da postura intimidadora da mãe, o bairro hesitou por um tempo. Apenas quando a situação ficou insustentável é que o caso finalmente foi levado à polícia.
A descoberta do caso e o choque das autoridades
Quando as autoridades intervieram, a realidade encontrada foi devastadora. Uma criança vivendo sozinha, sem estrutura mínima, sem adultos, sem proteção. O menino havia normalizado o sofrimento a ponto de torná-lo invisível.
A prefeita da cidade, Barbara Couturier, declarou à rádio France Bleu que ninguém conseguiria perceber o que acontecia porque a criança se apresentava sempre aparentemente bem. Segundo ela, o garoto teria criado uma espécie de autoproteção emocional: “Como se dissesse que estava tudo bem, quando não estava”.
O papel da Justiça: seis meses de prisão pelo abandono
No julgamento, ficou comprovado que a mãe colocou deliberadamente o filho em situação de perigo. A Justiça francesa a condenou a seis meses de prisão, reconhecendo o abandono de menor como crime grave, ainda que sem exposição midiática anterior.
O pai, que morava em outra cidade, não foi indiciado, por não haver comprovação de participação direta no abandono.
A sentença foi vista como necessária, mas insuficiente por parte da sociedade, que passou a discutir de forma intensa os limites da negligência parental e as falhas na detecção precoce de situações de risco.
O contraste mais doloroso: desempenho escolar versus devastação emocional
Talvez o ponto mais perturbador desse caso seja o contraste entre a devastação emocional e material que a criança vivia em casa e o controle comportamental absoluto que mantinha na escola. Ele aprendeu, aos nove anos, a esconder a própria dor para sobreviver.
Psicólogos ouvidos pela imprensa francesa explicaram que esse tipo de comportamento está associado a quadros de dissociação emocional precoce, em que a criança aprende a funcionar como adulto porque o ambiente não lhe concede outra escolha.
O menino hoje e o peso de uma infância roubada
Após a intervenção das autoridades, o menino foi retirado da situação de abandono e passou a receber acompanhamento. Informações oficiais sobre seu estado atual são preservadas por questões legais, mas os serviços sociais reconheceram a gravidade do trauma.
Ele sobreviveu. Mas sobreviveu sem infância, sem proteção e sem escolhas.
Quando a Europa descobre que o abandono também mora em apartamentos comuns
O caso de Nersac desmonta a ideia de que o abandono infantil é um fenômeno restrito a regiões pobres ou em crise humanitária. Ele mostrou que o abandono também mora em ruas tranquilas, em prédios comuns, em cidades pequenas da Europa desenvolvida.
Um menino de nove anos viveu sozinho por quase dois anos, enfrentou fome, frio e solidão — e ninguém percebeu.
A história comove pela força da criança. Mas ela acusa, com ainda mais força, a omissão de adultos, vizinhos, estruturas e relações. O menino foi forte. Mas nunca deveria ter precisado ser.
Fonte: CPG
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